Sobre Dragões e Insetos
Por Renato T. de Miguel
Há pouco mais de dez dias assisti pela terceira vez Blade Runner 2049. Esse é um grande filme por diversos motivos, o visual impecável (fotografia, design de produção, efeitos visuais), a história que segue e expande o universo introduzido por Ridley Scott em 1982 e, principalmente, os temas narrativos que nos põem a refletir por horas ou dias depois que descem os créditos.
Um desses temas é a substância da memória.
Em determinada cena, a Dra. Ana Stelline, arquiteta de memórias a serviço da Wallace Corporation, explica ao detetive K. que as lembranças não são feitas de detalhes reais, porque nós as recordamos com os nossos sentimentos. Não nos lembramos de um episódio da infância como ele realmente aconteceu. Lembramo-nos do que sentimos naqueles instantes do passado.
Ontem à noite, ao ler a notícia sobre o incêndio que destruía o Museu Nacional, certa recordação da minha infância se espargiu na minha consciência. Minha mãe uma vez me levou àquele museu. Embora os passeios à Quinta da Boa Vista ocorressem com certa frequência, visitas ao museu ou ao zoológico eram mais difíceis. Mas nesse dia fomos àquele casarão que abrigava antiguidades. Pouco antes eu tinha ouvido que um Rei vivera ali e era fascinante que aquela mansão velha tivesse sido tão importante um dia.
Ao andar pelos corredores, o piso de madeira rangia com um som oco, elevando a tensão que era reforçada a cada descoberta, a cada sala que eu entrava e observava aqueles grandes retângulos de vidro contendo coisas do passado. A sensação era de fascínio diante do poder do tempo: estavam ali fósseis de animais extintos, múmias que foram reis ou governantes no Egito há tantos e tantos séculos. Talvez pela primeira vez na vida as dimensões colossais do tempo e do espaço tenham surgido com um vislumbre diante dos meus olhos. Por óbvio, eu não sabia, mas não seria mais o mesmo no dia seguinte.
Na escola, entre as disciplinas humanas com as quais eu aprendia a ter contado, a história era a preferida. Com o passar dos anos o apreço pelas ciências humanas me conduziu ao curso de Direito, o Direito consolidou o gosto pela leitura e a literatura me ensinou novas coisas sobre as pessoas, sobre o tempo e sobre o próprio mundo. Aquele pequeno episódio do passado, possível e provavelmente, ajudou a moldar meus gostos, minha personalidade e, portanto, minha cadeia de decisões a partir dali.
As formas de conhecimento, por menor que seja o conteúdo que eu pude assimilar ao longo desses 30 anos em que estive vivo, fizeram de mim, creio com sinceridade, um indivíduo melhor – ao menos melhor do que eu seria, acredito firmemente, se nunca tivesse a oportunidade de reunir nenhum. Mas divago…
Se o conhecimento sobre o passado nos ajuda a compreender quem somos, situando-nos no presente, a ação sobre o presente pode moldar o nosso futuro. A evolução da medicina, por exemplo, tende a conferir maior dignidade à nossa existência por um período maior, ao passo que o desenvolvimento das tecnologias, se empregadas construtivamente, pode elevar as nossas condições materiais de subsistência.
A conservação e o progresso do saber devem (ou deveriam) ser um dos pilares da nossa caminhada como espécie.
Em Os Dragões do Éden, Carl Sagan fez uma constatação acachapante: ao condensar toda a história conhecida do universo desde o Big Bang no período de um ano (sendo 1º de janeiro o momento da Grande Explosão e os últimos instantes do dia 31 de dezembro os nossos dias), observou que os dinossauros surgiram na noite de natal e os humanos às 22h30 do último dia do ano. Toda a história humana conhecida ocupa os últimos 10 segundos do dia 31 de dezembro, ao passo que o período decorrido entre a idade média e os dias atuais ocupa pouco mais de 1 segundo.
A nossa existência é sabidamente estreita se comparada à eternidade do cosmos. E precisamente por isso, creio, a propagação e desenvolvimento das formas de saber a respeito de nós e desse mundo em que nascemos é o que de fato pode nos dar algum sentido.
Imagine que as efeméridas, em seu pequeno ciclo de vida que dura apenas poucas horas, tivessem a habilidade de compreender seu lugar e sua função na natureza; e que vão morrer, sim, mas que antes disso vão criar e reproduzir outras vidas, se comprazer com as ofertas da natureza e das relações com seus iguais. Seria inevitável reconhecer a beleza quase poética dessa condição.
Como indivíduos, nossa memória serve pouco ao registro da realidade, pois nossas vidas são microscópicas diante da magnitude do tempo e nossas lembranças são distorcidas pelo caos das nossas emoções.
Como espécie, contudo, nossa breve história é conservada e contada nos museus e bibliotecas ao redor do mundo, enquanto nos laboratórios e universidades – sempre atentos ao que aprendemos até aqui – nossas condições de existência tendem a ser aprimoradas.
É triste e de nenhum exagero constatar que ontem, na sucumbência do Museu Nacional ao calor do incêndio que destruiu cerca de 20 milhões de peças dessa história, a nossa memória coletiva sofreu um dano irreparável. De certa forma, creio eu, nestas horas falhamos em perseguir um sentido a este absurdo que é a nossa vida.
Não fomos capazes de preservar uma casa que sustentou bravamente partes fascinantes da nossa trajetória.
Roguemos para que aqueles que vierem depois de nós tenham mais zelo pelo nossa passado, pela pesquisa e pela ciência, pois são elas que nos auxiliam a solidificar nossa identidade e a construir sentido como seres humanos, bem como a registrar o fato de que estivemos aqui.